Individualismo / Bondade

[...]
- É escuro aqui.
- Sim, é escuro, você sabe onde está?
- Não, mas me dá medo.
- E você não se sente inseguro?
- Porque me sentiria? Posso sentir medo do escuro, mas é como se conhecesse esse lugar.
- Mas você conhece.
- Conheço?
- Conhece.
- E onde estou, quem é você?
- Depende de quem você é.
- Não te entendo...
- O que você vê?
- Eu vejo sombras.
- Apenas isso? Limpe sua mente.
- Desculpe-me, só vejo escuridão.
- Mas você não é vazio, vamos, aprofunde-se.
- Não dá, só breu.
- Acalme-se.
[...]
- ...
- Nada?
- Espera...
- ...
- Eu vejo... Vejo uma pequena luz, como uma pequena sombra branca nesse cenário negro. E ela cresce. Se tornou um gigante espaço branco, eu consigo me enxergar, consigo ver minhas mãos. Existem espelhos em todos os lugares, eu vejo meu reflexo...
- E como se sente?
- Normal... Porque os espelhos se movem?
- Porque você quer.
- Isso não parece ter muito sentido. Olho no fundo deles, e vejo mais escuridão. Mas são trevas diferentes do breu aqui vivido anteriormente, são trevas intelectuais. Trevas ideológicas...
- Prossiga...
- Eu vejo um mundo devastado, vejo pessoas ricas em seus carros, de pouco caso para com as pobres caídas aos seus pés. Vejo homens armados correndo para um campo, chorando como nunca... E eles morrem. Vejo homens importantes apertando as mãos, em sinal de paz, mas ambos sabem que a paz é inexistente, e que aquele aperto de mão foi falso, hipócrita. Vejo um mundo individualista, vejo pessoas egoístas, umas dominando as outras.
- Trágico.
- E eu vejo também uma pessoa, caminhando só. Ela ouve música no seu aparelho de última geração, e está destacada em meio a multidão. Com a sua simplicidade ela chama atenção.
- ...
- Também vejo homens desonestos corrompendo pessoas, bens e nações, vejo Guerra. Vejo muita Guerra. Vejo homens de bem morrendo pelo seu país, ignorando a sua própria vida. Mas de que vale defender o seu país, se todos os seus homens forem perder suas vidas em guerras? Vejo viúvas solitárias, filhos sem pai. Filhas sem mãe. Vejo hipocrisia, vejo muita hipocrisia.Vejo os responsáveis da Igreja renegar a ilustre palavra divina sobre os ingênuos crentes, vejo a contradição em suas palavras. Vejo o homem perder a sua essência, vejo máquinas, muitas máquinas. Revoluções, ditadores e desigualdade. Vejo bandeiras!
- E você também vê...
- Eu me vejo, no futuro, repleto de solidão. Me vejo abandonado, perdi a todos, e todos me perderam. Afinal de contas, todos SE perderam... Nada mais adianta, é muita ganância... Acho que esses espelhos não deveriam mostras esse tipo de coisa, é tudo muito ruim.
- Mas é o mundo em que você vive...
- Não, não é!
- Como não? É nele que você mora, come, dorme.
- Este é o mundo que abriga o meu mundo.
- Não te entendo.
- Apesar de tantas desgraças, existem pessoas interessadas na nossa salvação. Eu sou uma delas, mas também tenho consciência de que se a massa não se empenhar, de nada adianta me esforçar. Por isso, gasto os meus esforços renovando o meu mundo, a minha vida, e o que me cerca. Meu amor é o meu mundo, quem eu amo é minha vida, e o que me cerca me faz bem, logo, dou cem por cento do meu eu pelo que eu acredito, sem hipocrisia ou falsidades. Dedico todas as minhas virtudes ao bem estar do meu mundo, porque dele eu prevaleço. Então de nada adianta chorar com os soldados ou bolar planos revolucionários se for para ser deixado de lado ou então massacrado pela massa. Não adianta ter dó, piedade, se não podemos fazer nada para melhorar a situação. Só adianta tentar ser feliz, sobretudo, completo com o que tenho, independente do que ocorre mundo a fora. Eu quero ela, sempre comigo, e quero eles, até a morte. São meu mundo, minha vida, meu amor.
- Admirável a sua consciência ser tão individualista, mas ao mesmo tempo tão justa consigo mesma.
- Não é individualista, é realista. Se eu pudesse, semearia a paz mundo a fora, daria tudo de mim. Mas hoje, até ser bom parece pecado.
- Você deveria ser pastor.
- Eu não acredito em Deus.
- ...
- Aonde estamos mesmo?
- Em você, na sua cabeça, na sua consciência, sou você, seu eu interior, seu ID nunca revelado. Nós estamos em coma, nossa bondade nos feriu, fomos atingidos na revolução, e não fazíamos nada. Torça para que aqueles por quem você prezou não te abandonem, pois teremos muito tempo para conversar.
[...]




                                                                                 "A sua bondade te matou."